Carla Fernanda da Silva
Historiadora
Todas as religiões tiveram grande
respeito pelos mendigos, porque estes são a prova de que o espírito e a regra,
as consequências e o princípio falham vergonhosamente numa coisa tão singela e
banal quanto sagrada e vivificante como era a esmola.
Queixamo-nos dos
mendigos nos países do sul e esquecemo-nos de que a insistência com que se nos
colam é tão legítima quanto a obstinação do estudioso perante um texto difícil.
Não há sombra de hesitação, não há indício, ainda que imperceptível, de vontade
ou reflexão que eles não leiam na nossa fisionomia.
Walter
Benjamin – Sentido Único
A
Biblioteca de Ciências Humanas da Université de Franche-Comté é um ambiente extremamente
democrático. Nas mesas se espalham estudantes de todos os continentes, e entre
burcas e minissaias, dreads, xales de
oração e keffiyeh, teses são escritas
nas mais diversas línguas. Os alfabetos cirílico, grego, hebraico, árabe e
latino misturam-se em telas de computadores e blocos de notas. O silêncio
impera, o burburinho de tantos idiomas e sotaques são ouvidos apenas nos
corredores e no belo pátio interno.
Pátio Interno – Université de Franche-Comté
Foto: Carla Fernanda da Silva
Mas não
são apenas estudantes e professores que circulam por entre as estantes da
Biblioteca da Rue Megevand, como é
conhecida, também a frequentam alguns moradores de rua e doentes psiquiátricos.
Acerca de 14 km
da cidade, na comuna de Novillars - com cerca de 1600 habitantes, existe um
grande hospital e centro psiquiátrico. Semelhante ao Brasil o internamento é
temporário e, como muitos foram abandonados pela família, é comum vê-los
vagando pelo centreville de Besançon
de tempos em tempos.
Algumas
destas pessoas têm como destino diário a Biblioteca de Humanas, como um senhor
negro que passa o dia falando ‘sozinho’ na escada de acesso à biblioteca e, nos
dias mais frios, fica sentado em um sofá no setor de leitura de revistas e
jornais. Há também um jovem que se veste de túnica marrom e um manto verde, parece um
personagem medieval, sempre com os pés descalços, mesmo no frio de 1ºC de
dezembro, chama a atenção de todos. Em pé, diante das estantes, ele lê
atentamente os livros de filosofia.
Nas
últimas três semanas outro senhor, de gestos contidos e certa timidez, tem me chamado a atenção. Vi pela primeira vez quando pediu um cigarro a uma conhecida; as mãos sujas, a
roupa puída e rasgada, possibilitou-nos reconhecer como um morador de rua. Ele
tem ido todos os dias e senta-se sempre na primeira mesa, onde também estudo. No
balcão, pede os livros que deseja, tira do bolso com cuidado e respeito uma caneta e passa a anotar frases em uma
folha de rascunho. Diferente de nossas citações bem esquadrinhadas em fichas
quadriculadas, suas frases espalham-se sinuosas sobre a folha, em sentidos
diversos e se entrecruzando, mais parece um mapa de ruas formadas por pequenas
letras.
Curiosa, fiquei alguns dias tentando ler o título e o autor do livro que ele busca todos os dias, um grosso volume com mais de 1000 páginas, mas a minha miopia teimava em embaçar as letras. Um dia, ele saiu e deixou seu material sobre a mesa, levantei-me e fui ler o título, para meu espanto era uma coletânea de Philip K. Dyck, escritor de ficção científica, cuja obra é conhecida pela maioria por suas adaptações ao cinema, como o cult Blade Runner, O Vingador do Futuro, Minority Report, entre outros.
Curiosa, fiquei alguns dias tentando ler o título e o autor do livro que ele busca todos os dias, um grosso volume com mais de 1000 páginas, mas a minha miopia teimava em embaçar as letras. Um dia, ele saiu e deixou seu material sobre a mesa, levantei-me e fui ler o título, para meu espanto era uma coletânea de Philip K. Dyck, escritor de ficção científica, cuja obra é conhecida pela maioria por suas adaptações ao cinema, como o cult Blade Runner, O Vingador do Futuro, Minority Report, entre outros.
Foto: Reprodução
Philip
K. Dyck é um autor que os fãs gostam de pensar como um marginal, um ‘vagabundo
iluminado’ que teve reconhecimento apenas após a sua morte e que, para além de
ficção, escreveu profecias científicas, agora anotadas em linhas tortuosas por um
curioso leitor Pergunto-me o que será que ele lê nas entrelinhas das histórias
de Dick. Quais mistérios busca decifrar ao misturar enigmáticas frases de
tantas histórias?
Philip K. Dyck
Foto: Reprodução
Ele não é estudante universitário, é alguém que a ciência médica designou como louco e a sociedade excluiu. Penso que pouco importa as outras histórias que ele escreve nas junções e sobreposições de frases de Philip K. Dyck ou quais mundos ele habita em sua leitura, o que importa é que todos os dias ele vem à Biblioteca construir o seu mundo, porque ali encontrou acolhida e respeito.
As
Bibliotecas estão aí, com milhares de mundos-livros a habitar, só é preciso
entrar e ler. Não há valores a pagar, por isso não há desculpa para dizer que livro
é inacessível e caro. Os ambientes são sempre interessantes e os frequentadores
assíduos costumam formar uma silenciosa, cúmplice e solidária comunidade. Não
há solidão em uma biblioteca!
Besançon, 17/02/2014