quinta-feira, 14 de março de 2013

As vivências homoafetivas de mulheres

Pesquisa discute as dificuldades e os espaços de encontro daquelas que assumiram sua orientação sexual em Blumenau


As vidas humanas são marcadas por intermitências, fascínios, sentimentos, pulsões, desejos. Mas, há “os ditos” e os “não ditos”, histórias que se fazem esquecer ou lembrar: as homoafetividades femininas, além de negadas, foram ao longo do tempo, silenciadas. Foi a partir dessa percepção que surgiu a pesquisa Outras Vozes: Análise das Narrativas de Relações Homoafetivas Femininas em Blumenau, com o objetivo de contribuir com as discussões e expressões acerca da sexualidade em suas multiplicidades e, sobretudo, registrar a história dessas mulheres. Foram entrevistadas 18 mulheres com idade entre 17 e 46 anos, com vivências a partir da década de 1970, de profissões e escolarizações variadas, para refletir sobre as diferentes experiências.

Antes mesmo de viverem uma relação homoafetiva, por não se portarem dentro das categorias idealizadas de “feminino”, estas mulheres se lembram de situações de constrangimento e insulto em sua infância:

– Desde criança, sempre tive um comportamento que, aos olhos dos outros, era muito andrógino: o jeito de andar, falar... Eu queria jogar futebol e não brincar de boneca, eu queria usar calça e não usar saia. Então, na escola, sempre debochavam de mim, eu me sentia excluída, sofri muito com isso. Meus pais invocavam com isso. Minha mãe mandava andar com um livro na cabeça, porque ela estava preocupada com o jeito que eu andava. Meu pai brigava comigo: Seja mais feminina! – lembra Cláudia, professora de Música, 29 anos.

Neste testemunho, percebe-se que os mecanismos que edificam o “verdadeiro sexo” tratam de moldar uma normalidade, através de “fórmulas” de como as meninas/mulheres devem agir, como devem ser seus corpos. Em cada minúcia, um policiamento contínuo. Para os diferentes, a vergonha, a culpa e o sentimento de inferioridade se mostram na medida em que as dicotomias certo e errado, bem e mal, corpo e mente, feminino e masculino são previamente estabelecidas: 

– Não vejo, em Blumenau, espaço para a diversidade. Aqui, existem as mensagens subliminares, por exemplo, não se prega a diversidade na Educação. A agenda que a Secretaria [de Educação] entrega para crianças e adolescentes de Blumenau tem um boneco de homem, um boneco de mulher, uma menina e um menino. Então não promove a diversidade, não põe pessoas, coloca par: menino/menina, filhinho/filhinha. Isso é entregue a trinta mil crianças todo ano. Deseja-se que o discurso do professor tenha a diversidade pautada, mas a agenda que o guri olha todo dia não assume esse discurso – aponta Clara, professora, 40 anos. 

A análise das entrevistas mostrou como ponto comum as experiências de insulto e preconceito na escola: um dos principais espaços de constituição de relações e construção de subjetividades, durante 14/18 anos de suas vidas. Para algumas, as lembranças são desagradáveis, principalmente para quem não se “enquadra” nos padrões de formação e disciplina, como conta Laura: 

– Tenho algo muito forte com não gostar da escola, da infância que a escola traz pra gente. Lembro, eu muito pequena escutava xingamentos das outras crianças da escola e, uma vez, acho que eu escutei: ô, sapatão... não sei se foi esse o termo, mas eu sei que o termo queria dizer, ao fato de eu ser muito briguenta sempre – diz Laura, professora, 33 anos. 

Palavras ofensivas e caricaturas são criadas com o intuito de ofender, de inferiorizar, e muitas vezes atingem seu objetivo: 

– Machorra, como eu odeio essa palavra! – disse Sarah, professora aposentada, 46 anos. 

A juventude e a vida adulta foram marcadas por três momentos importantes na trajetória dessas mulheres: 1) a compreensão do desejo por outra mulher; 2) a aceitação deste desejo para si; 3) e a exposição deste desejo para as outras pessoas. Estes momentos se rompem e criam novos laços, perpassaram pela reflexão de suas condições humanas, suas crenças, costumes, seu estar na sociedade, no âmbito familiar, profissional, na escola e no trabalho. 

A exposição da homossexualidade traz a preocupação com as sanções que podem ocorrer sob as estruturas básicas de sobrevivência, afetos, rupturas, carreira profissional, conforme nos relatou Andressa: 

– Como eu trabalho numa área têxtil, numa indústria de família [tradicional], digamos assim... tem que ficar se escondendo o tempo todo, é bem ruim. Quantos empregos eu perdi por causa disso? Dois ou três? Eu estava trabalhando numa empresa e quando deram os três meses pra ser efetivado, depois de elogios, simplesmente disseram que eu não tinha adequação de valores morais para permanecer na empresa. Exatamente essas palavras: falta de valores morais _ reporta a cronoanalista, 34 anos. 

Ente patrões e empregados temos o constante exercício do poder. E esconder os afetos foi uma forma de se preservar dos atos de preconceito e garantir a sobrevivência. 


Espaços possíveis 

Em Blumenau, a homossexualidade marcou seu espaço de visibilidade somente a partir da década de 1990, quando foi criado o grupo Fazendo a Diferença. Atualmente, é objeto de discussões acadêmicas promovidas pelo grupo de pesquisa Saberes de Si (Furb) e pelo coletivo Clio no Cio (2010); está presente no teatro através das peças A Parte Doente e Volúpia, da Cia Carona, e Figo, do Grupo K, e na exposição fotográfica Escritos da Carne. Temos também os movimentos sociais, como os grupos Liberdade e o Centro Defesa dos Direitos Humanos. 

Devido à industrialização e o surgimento da Furb nos anos 1960, Blumenau tornou-se centro de recepção migratória. A possibilidade de estudo e ascensão financeira foram citadas como motivo das famílias terem optado por se estabelecer na cidade. Como centro urbano, também se torna um espaço de vivências marginalizadas, discriminadas; local onde o “anonimato” permite viver as diferenças. Em Blumenau, diversos locais tornaram-se “espaços homossexuais”, alguns constituídos com esta finalidade, como as boates/danceterias: Victor ou Victória (anos 1980/1990), a Galesi Mix (anos 1990/2000), a Imperium (anos 2000) e a Fly (anos 2010); mas também bares foram citados como locais de encontro e paquera, que não foram constituídos como tal: o Bar Kriado, KGB & CIA, entre outros. 

Mas os homossexuais não querem se restringir a estes espaços: querem conviver com todos, pois “a gente quer estar onde as outras pessoas estão, a gente quer dançar onde as outras pessoas dançam, e comer onde todo mundo come, sabe”, afirma Luiza, pedagoga, 41 anos. A possibilidade de estar onde as outras pessoas estão está relacionada com a aceitação de si, da família, dos amigos e da sociedade: 

– Eu não vejo isso como errado, pra mim é natural. Queria que as pessoas me vissem como igual a todo mundo. Não precisar me esconder. Hoje, meus pais me aceitam. Eles são incríveis, não tenho nem palavras! Eu não vejo mais necessidade de me esconder – comenta Samara, redatora publicitária, 21 anos. 


A amizade ajuda a superar angústias 

A amizade é um dos laços mais fortes que se constroem entre homossexuais. Sejam elas fruto da não compreensão familiar, ou de uma afinidade adquirida por partilharem de angústias similares:

– Pra mim, teve um aumento no grupo de amigos, conheci a Isadora e a Carol, a Clara e a Luiza. 

Outras pessoas, com quem temos afinidades – aponta Priscila, psicóloga, 29 anos.

A família e a sociedade, por vezes, agem de maneira a não querer saber sobre a afirmação homossexual; assim, as amizades são fundamentais na positivação de seus modos de vida, de participar das histórias de vida das outras pessoas. É no coletivo que é possível construir possibilidades de superar o preconceito e compreender que a estigmatização de sua diferença como inferioridade é uma construção social.

Nos relatos, percebe-se que o ato de assumir sua homossexualidade permite a pessoa viver a plenitude do encontro consigo, de sua aceitação e, sobretudo o encontro com outra pessoa e a possibilidade de viver uma relação baseada no amor e na admiração mútuos. Nesse sentido, Luiza refletiu:

–Tem algo que considero extremamente importante: acho que a gente se apaixona por pessoas. Acho que vivemos provisoriamente as nossas sexualidades, potencialmente todos somos bissexuais. Entre a extrema heterossexualidade e a extrema homossexualidade, existem muitas sexualidades que podem ser vividas por uma mesma pessoa. 

Para além do corpo e gênero, as relações são constituídas por pessoas. Cláudia, falando sobre sua companheira há 4 anos, corrobora com as palavras de Luiza: 

–A Priscila é muito importante pra mim, pois, antes de conhecê-la, eu não tinha tido contato com os movimentos sociais. Eu me apaixonei pela Priscila, por essa paixão que ela tem pela humanidade. De querer ver o ser humano se respeitar, de lutar para que o ser humano tenha seus direitos respeitados. 


A questão da felicidade 

Recentemente, grupos conservadores levantam cartazes contra a homossexualidade. Mas o que os motiva? A homossexualidade não é algo novo, mas a possibilidade dos homossexuais serem felizes, sim. Algo impensável antes da década de 1960. Perceber a felicidade alheia também faz com que as pessoas reflitam sobre sua infelicidade. A intolerância também pode ser uma atitude de quem deseja mascarar, esconder seu descontentamento no mundo. Impossibilitados de mudar a situação, talvez por uma compreensão rasa sobre o viver, preferem não permitir a felicidade alheia. Assim, apegam-se as dicotomias normalizadoras e apelam à violência para fazer valer o que pensam ser verdade. 

Apesar das tensões provocadas pelos grupos intolerantes, a legalização dos direitos civis vem se sedimentando em alguns países. Mas a grande conquista dos homossexuais é a consciência do merecimento à felicidade: 

– Sou muito feliz hoje pela minha escolha, com a minha companheira e a minha família, sabe. Fui feliz em outra relação [hétero], mas acho que eu não fui tão feliz quanto sou agora! Agora eu me vejo inteira, autêntica, legítima, antes parecia que eu não sabia lidar, de não entender, de não compreender. Eu não preciso ficar buscando artifício para justificar o meu jeito de me vestir, o meu jeito disso, daquilo, eu não tenho estereótipo. Hoje sou inteira! – aponta Clara, casada há sete anos com Luiza. 

* Artigo escrito por Carla Fernanda da Silva (Historiadora e Doutoranda em História pela UFPR) e Celso Kraemer (Doutor em Filosofia pela PUC/SP e professor da FURB), que traz o resultado parcial de pesquisa financiada por Edital Nacional de seleção de pesquisas em temas de Relações de Gênero, Mulheres e Feminismos. Também integram a equipe do projeto: Cristiane Theiss Lopes, Fabiele Lessa, Melissa Probst e Sally Satler.

**Artigo publicado no Jornal de Santa Catarina – 05/03/2013

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