quarta-feira, 12 de março de 2014

Mistérios da carne e do pó


A primavera está chegando aqui! Lindos dias ensolarados que lembram a minha infância. Hoje pela manhã enquanto caminhava para a universidade, lembrei de outro dia de sol, perdido em minha memória, quando formigas apressadas levavam pedaços de folhas para a sua casa. Eram de um pequeno formigueiro escondido, próximo a um canteiro em nossa antiga casa de madeira. Se nos primeiros dias pouco me importei com o árduo trabalho das pequenas, detendo-me apenas uns poucos minutos a observar, houve uma tarde que fiquei ali parada por uma hora ou mais. As formigas carregavam para o interior do formigueiro os pedaços de um inseto morto, e me permitiram pensar os mistérios da vida e da morte, da carne e do pó, e a providencial renovação do mundo.


Foto: reprodução

No dia seguinte voltei ao formigueiro, ingenuamente tentando dar nomes às formigas, tentando reconhecer pequenas diferenças individuais em meio aquela multidão. Nos livros da biblioteca da escola, pesquisei sobre o interior do formigueiro, curiosa para saber para quê levaram os pedaços do inseto e o que fariam com ele. Aprendi muito em dois dias e voltei a observá-las no terceiro, dessa vez questionada pelo meu avô paterno, que resolveu implicar com o tempo que eu estava ‘perdendo’ com as formigas, que já pensava como de estimação.

No quarto dia voltei bem empolgada da escola, pois havia encontrado um livro maravilhoso com fotos do interior de um formigueiro, e não apenas ilustrações, também com imagens de diversas espécies de formigas. Pensei que agora poderia descobrir o ‘tipo’ de formigas que eram minhas amigas. De longe, vi meu avô paterno parado diante do formigueiro, achei que ele pudesse ter se interessado pela vida delas. Mas não, ao chegar perto vi que em sua mão havia uma chaleira com água fervendo que ele jogava sobre o formigueiro. E disse-me que estava matando-as para que nenhuma criança pisasse no formigueiro e fosse picada pelas formigas. Eu era a única criança a brincar naquele canto do quintal e lembro que pensei em questionar, mesmo com medo, mas ao olhar pra ele, vi-o sorrindo e soube que era inútil. Aquele sorriso me ensinou muito sobre outros mistérios da vida e da morte, da carne e do pó e da banalidade da crueldade humana.


Foto: reprodução

Besançon, 12/03/2014

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

O mendigo que estuda Philip K. Dyck



Carla Fernanda da Silva
Historiadora

Todas as religiões tiveram grande respeito pelos mendigos, porque estes são a prova de que o espírito e a regra, as consequências e o princípio falham vergonhosamente numa coisa tão singela e banal quanto sagrada e vivificante como era a esmola.
Queixamo-nos dos mendigos nos países do sul e esquecemo-nos de que a insistência com que se nos colam é tão legítima quanto a obstinação do estudioso perante um texto difícil. Não há sombra de hesitação, não há indício, ainda que imperceptível, de vontade ou reflexão que eles não leiam na nossa fisionomia.
Walter Benjamin – Sentido Único


A Biblioteca de Ciências Humanas da Université de Franche-Comté é um ambiente extremamente democrático. Nas mesas se espalham estudantes de todos os continentes, e entre burcas e minissaias, dreads, xales de oração e keffiyeh, teses são escritas nas mais diversas línguas. Os alfabetos cirílico, grego, hebraico, árabe e latino misturam-se em telas de computadores e blocos de notas. O silêncio impera, o burburinho de tantos idiomas e sotaques são ouvidos apenas nos corredores e no belo pátio interno.

Pátio Interno – Université de Franche-Comté
Foto: Carla Fernanda da Silva

Mas não são apenas estudantes e professores que circulam por entre as estantes da Biblioteca da Rue Megevand, como é conhecida, também a frequentam alguns moradores de rua e doentes psiquiátricos. Acerca de 14 km da cidade, na comuna de Novillars - com cerca de 1600 habitantes, existe um grande hospital e centro psiquiátrico. Semelhante ao Brasil o internamento é temporário e, como muitos foram abandonados pela família, é comum vê-los vagando pelo centreville de Besançon de tempos em tempos.

Algumas destas pessoas têm como destino diário a Biblioteca de Humanas, como um senhor negro que passa o dia falando ‘sozinho’ na escada de acesso à biblioteca e, nos dias mais frios, fica sentado em um sofá no setor de leitura de revistas e jornais. Há também um jovem que se veste  de túnica marrom e um manto verde, parece um personagem medieval, sempre com os pés descalços, mesmo no frio de 1ºC de dezembro, chama a atenção de todos. Em pé, diante das estantes, ele lê atentamente os livros de filosofia.

Nas últimas três semanas outro senhor, de gestos contidos e certa timidez, tem me chamado a atenção. Vi pela primeira vez quando pediu um cigarro a uma conhecida; as mãos sujas, a roupa puída e rasgada, possibilitou-nos reconhecer como um morador de rua. Ele tem ido todos os dias e senta-se sempre na primeira mesa, onde também estudo. No balcão, pede os livros que deseja, tira do bolso com cuidado e respeito uma caneta e passa a anotar frases em uma folha de rascunho. Diferente de nossas citações bem esquadrinhadas em fichas quadriculadas, suas frases espalham-se sinuosas sobre a folha, em sentidos diversos e se entrecruzando, mais parece um mapa de ruas formadas por pequenas letras.

Curiosa, fiquei alguns dias tentando ler o título e o autor do livro que ele busca todos os dias, um grosso volume com mais de 1000 páginas, mas a minha miopia teimava em embaçar as letras. Um dia, ele saiu e deixou seu material sobre a mesa, levantei-me e fui ler o título, para meu espanto era uma coletânea de Philip K. Dyck, escritor de ficção científica, cuja obra é conhecida pela maioria por suas adaptações ao cinema, como o cult Blade Runner, O Vingador do Futuro, Minority Report, entre outros.

Foto: Reprodução

Philip K. Dyck é um autor que os fãs gostam de pensar como um marginal, um ‘vagabundo iluminado’ que teve reconhecimento apenas após a sua morte e que, para além de ficção, escreveu profecias científicas, agora anotadas em linhas tortuosas por um curioso leitor Pergunto-me o que será que ele lê nas entrelinhas das histórias de Dick. Quais mistérios busca decifrar ao misturar enigmáticas frases de tantas histórias?

Philip K. Dyck 
Foto: Reprodução 

Ele não é estudante universitário, é alguém que a ciência médica designou como louco e a sociedade excluiu. Penso que pouco importa as outras histórias que ele escreve nas junções e sobreposições de frases de Philip K. Dyck ou quais mundos ele habita em sua leitura, o que importa é que todos os dias ele vem à Biblioteca construir o seu mundo, porque ali encontrou acolhida e respeito.

As Bibliotecas estão aí, com milhares de mundos-livros a habitar, só é preciso entrar e ler. Não há valores a pagar, por isso não há desculpa para dizer que livro é inacessível e caro. Os ambientes são sempre interessantes e os frequentadores assíduos costumam formar uma silenciosa, cúmplice e solidária comunidade. Não há solidão em uma biblioteca! 

Besançon, 17/02/2014


 

sábado, 25 de janeiro de 2014

Dois encontros com Fausto

Viajar, adentrar em outras cidades e tornar-se um voyeur do viver dessa imensa diversidade de gentes e culturas que há pelo mundo é um prazer inestimável. É também uma forma de ascese, sendo necessário despir-se de sua cultura e pré-conceitos para deixar-se a contemplar e descobrir a cidade que se despe para nós, só assim que nos tornamos algo mais nessa experiência.

Em Frankfurt, para além da marginal e curiosa flanerie pelas ruas do comércio árabe, indiano e chinês, e pelas ruas de cassinos e bordéis, fomos atraídas também por um destino que a cidade mostra com orgulho: a casa de Johann W. Goethe. Os quatro andares da intocada Goethe Haus nos impressionou pela realidade aristocrática do cotidiano do escritor, materializada nos dourados e pesados móveis e castiçais, estampas e quadros, na sua sala de música e nas belas encadernações de seus livros.

Não foi difícil confundir o autor com sua obra e imaginar o entediado Fausto perambulando pela sala de jogos, enquanto discutia com o cínico Mefistófeles, insolentemente sentado em uma das cadeiras de veludo vermelho.

Sala de Jogos - Goethe Haus

Em conversas sussurradas – como se a casa pudesse nos ouvir – compartilhamos lembranças e imagens de sucessivos ‘Faustos’ vistos por nós em filmes e em peças de teatro, como o Fausto de Pushkin, interpretado por Ana Carbatti na peça ‘Pequenas Tragédias’, que tanto nos impressionou. Na ‘Goethe Haus’ vivenciamos uma nova experiência, em que o amálgama de viagens e memórias criou um encontro com um Fausto em corpo feminino e pele negra que muito surpreenderia Goethe. Em nossa imaginação, as palavras de Mefistófeles reverberaram, por entre os luxuosos cômodos da casa:

‘Se bem me lembro, finalmente o senhor me chamou do fogo, um arlequim pra acossar a chatice. E eu, demônio, mesquinho, fiz o que pude pra revigorar e vivificar teus esforços; trouxe sereias, bruxas também, e pra quê? Tudo em vão!’


Cena da peça Pequenas Tragédias - Renato Carrera (Mefistófeles) e Ana Carbatti (Fausto)

Perturbadas pela riqueza da casa e pelo viver burguês do escritor, despedimos-nos de Goethe e de Frankfurt, mas não de Fausto, que a partir dali nos acompanharia em nossa viagem.

Nosso segundo encontro com Fausto foi em Praga; após muito caminhar pela Cidade Velha, percebemos que éramos ‘seguidas’, por um misterioso senhor com trajes do século XVI, na maior parte do tempo despercebido por nós, pois se mantinha muito bem escondido nas reentrâncias dos prédios. Era o ‘fantasma’ de Johannes Faust, o real Fausto, e não o personagem de Marlowe, Goethe, Pushkin, etc., tantas vezes inventado e reinventado. O esquecido ‘Fausto de Praga’, que inspirou esses escritores, agora reivindicava de nós reconhecimento e, sobretudo, um instante de atenção para ouvi-lo contar sua história, cobrando – como Mefistófeles – o sucesso que tantos obtiveram com o seu limbo.

Foi na rua Melantrich que encontramos o Dr. Johannes Faust, médico e alquimista alemão, que muito viajou pela Bohemia, Baviera e Saxônia até se estabelecer em Praga, onde morreu por volta de 1540. Atualmente ocupada por prédios ‘novos’ que vão do século XVII ao XIX e por uma feira central, cujas bancas de frutas aos poucos sucumbem aos souvenires da cidade, em nada lembra a rua onde viveu, destruída por um grande incêndio que atingiu Praga um ano após a sua morte. Muito menos a ostentosa ‘Casa de Fausto’, na Namesti Karlova, onde nunca esteve. ‘Lendas! Parece que minha vida é sempre era consumida por lendas e esquecimento.’ – desabafou Dr. Faust.

Rua Melantrich - Cidade Velha - Praga

Numa época em que as mulheres e homens eram julgados como hereges porque pesquisavam a natureza e ousavam questionar as falácias da crença humana, para fugir da fogueira optavam pela errância de cidade em cidade. Ou então moravam em lúgubres casas, onde realizavam seus estudos, casas que logo ganhavam suas lendas e mistérios cochichados por entre ruas e pubs. Assim aconteceu com Johannes Faust, não apenas sussurros medrosos, mas também um livro escrito pelo pastor protestante Johann Gast que escreveu sua biografia e sedimentou sua imagem como necromante, mágico e ocultista. A perseguição empreendida aos ‘feiticeiros’ pelas igrejas protestantes criou o pacto entre Fausto e o Diabo que, a partir daí, transformou-se em um personagem literário e exemplo moral dos perigos que a curiosidade e o oculto podem infringir às pessoas.

Para nós, Johannes Faust lamentou-se por seu nome na história não aparecer como um estudioso dos astros, da antiguidade grega e da alquimia, como Paracelso – que supostamente teria sido seu aluno – Copérnico ou Giordano Bruno, mas somente como aquele que compactuou com o diabo. Atormentado, seguiu seu caminho por entre os turistas e moradores de Praga, buscando entre eles alguém mais para ouvir a sua história e quem sabe, interessar-se por seus estudos, pessoas que pudessem ver o homem Johannes Faust e não apenas o personagem.

O que o nosso caro Johannes Faust não compreendeu é que pela literatura, sobretudo de Goethe, ele conquistou a eternidade. Diferentemente de seus contemporâneos, ele segue sendo reinventado e ressignificado, permitindo aos inúmeros leitores um encontro com sua alma sedenta de conhecimento, sempre possibilitando uma reflexão sobre os tormentos do viver humano. E com certeza os mais curiosos procurarão para além da obra literária - e encontrarão o real Johann Faust que inspirou tantos escritores, dramaturgos e cineastas. 

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Procurando Kafka em Praga

Escrito por Sally Satler e pela 
historiadora Carla Fernanda da Silva

Antes mesmo de chegar à Praga, na República Tcheca, estávamos ansiosas para ir até os locais em que Kafka viveu e percorreu, tentar encontrar a cidade que inspirou e influenciou o escritor lido e relido ao longo dos anos. Na primeira noite em que caminhamos, nos deparamos com uma livraria que leva o seu nome e encontramos um pequeno livro sobre os lugares que ele viveu e frequentou. Escrito por um estudioso de sua vida e obra, esse foi um dos melhores achados desta viagem, junto com uma HQ d’A Metamorfose’, que apesar de estar escrito em tcheco (não em alemão, na língua no qual Kafka escreveu sua obra), não resistimos, pois as ilustrações faziam uma clara referência aos desenhos de Kafka e o idioma tcheco parecia nos aproximar um pouco mais do seu cotidiano pelas ruas de Praga. Nessa primeira noite, mal imaginávamos o quanto Kafka estaria sempre perto de nossas caminhadas pela labiríntica cidade, que por tantas vezes nos perdemos.

Desenhos de Kafka

No segundo dia, partimos para o distrito do Castelo de Praga, onde viveram os antigos monarcas e hoje é a sede do presidente tcheco.  Para além do belíssimo Castelo, da Catedral de S. Vito e da beleza modesta da pequena Igreja de São Jiri (S. Jorge), o que mais nos agradou foram as pequenas e intocadas casas de vila no Golden Lane, local onde viveram aqueles que construíram o distrito do Castelo, e que sucessivamente foram alugadas para diversas pessoas, entre elas Kafka, que residiu na nº 22, onde escreveu “Um Médico Rural” – hoje uma charmosa livraria - , a cartomante Matylda Prusová – torturada e assassinada por nazistas alemães – e o historiador amador e colecionador de filmes Josef Kazda; além de abrigar um minúsculo Pub para aqueles trabalhadores, com o curioso desenho de um demônio em suas paredes.

Golden Lane - uma das casas que Kafka morou

Golden Lane - casa da cartomante Matylda

Golden Lane - casa  do historiador amador
e colecionador  de filmes Josef Kazda

Golden Lane - pequeno pub dos trabalhadores

A nossa procura pelo escritor continuou com a ida ao Museu Kafka, que inicia com uma breve passagem sobre a sua vida familiar e perpassa pelas dificuldades de relacionamento entre ele e o pai, especialmente. Seus manuscritos e desenhos foram expostos sob algumas mesas de vidro e em fichários, como aqueles das nossas antigas bibliotecas. Mas o mais interessante ainda estava por vir: em direção a uma cave, descemos vários degraus onde tinha um espelho que dava uma sensação de profundidade, talvez uma forma de nos mostrar que estávamos para entrar no mundo imaginário de Kafka; estranho pensar que éramos nós refletidas no espelho, e no quanto sua obra reflete o mundo que vivemos atualmente. Dali por diante, são inúmeras as salas que tentam trazer o fantástico de Kafka para a realidade, e isso acontece quando os personagens e as obras ganham vida em imagens, objetos, tato e sons. Na penumbra, imensos arquivos de granito preto a refletir a nossa face, em cada gaveta os nomes dos personagens de Kafka repetem-se, existentes numa grande sala-corredor que vai dando voltas – em alusão à sua crítica ferrenha à burocracia – Telefones, nas esquinas da sala-corredor, tocam continuamente, ao atendê-los, ouvimos falas dos seus personagens, de modo a nos transportar para o seu mundo.


Museu Kafka - arquivos e telefone

Museu Kafka - arquivos que nos refletem

Da sufocante burocracia, passamos para uma projeção em uma sala de espelhos que multiplicam os devaneios kafkianos, para voltarmos à penumbra, dessa vez em tons vermelhos e ambientada por gritos sufocados. A máquina da obra “Na colônia penal” estava ali, com o corpo do personagem preparado para receber a inscrição do crime o qual era acusado. Da mesma obra, conseguimos espiar por um orifício o vídeo com a condenação sendo inscrita no corpo, a pele cortada de forma precisa, primeiramente em traços horizontais e depois verticais, para no fim formar as palavras já borradas pelo sangue que escorria. De fato, o museu conseguiu captar a realidade de algumas das principais obras do escritor.


Museu Kafka - a máquina da obra "Na colônia penal"

Museu Kafka - foto do vídeo com a inscrição do crime
 em referência à obra "Na colônia penal"

No último dia, resolvemos errar pela cidade, mesmo assim nos deparamos com Kafka em nosso caminho. Chegamos até à ponte com a belíssima vista que ele tinha quando escreveu “A Metamorfose”, pois hoje o prédio onde ficava não existe mais. E por último, chegamos ao Café Kafka, que fica na casa onde nasceu, apesar de só a entrada ser original dos tempos em que permaneceu ali.


Vista do escritor ao escrever "A Metamorfose"

Quem leu os livros de Kafka encontrará sua obra na cidade labiríntica – literalmente – de ruas estreitas e passagens insólitas; no Castelo e, para o mais atento ou medroso, quem sabe a encontre na ausência de baratas, que talvez também tenham desaparecido quando da morte de Gregór Samsa. Mas não encontrará Kafka, por mais que a cidade o homenageie. Kafka desapareceu de Praga, tal como os personagens mais importantes ao fim dos seus livros. Kafka é um escritor que não se sente, não se materializa, nem pelas suas fotografias. Porque Kafka é o fantástico. A sua obra é que é realista.


Manuscritos de Kafka


domingo, 29 de dezembro de 2013

Masculin/Masculin: nudez e violência no Musée d´Orsay

Por Carla Fernanda da Silva/ Sally Satler



Masculin/Masculin[1] nos traz em seus folhetos e releases a promessa de ser a segunda exposição de nudez masculina em Museus, diferentemente da nudez feminina, sempre presente. Porém, se pensarmos nos nus masculinos greco-romanos e da renascença, presentes nas ruas e museus italianos e, também em outros museus como o Louvre, questionamos esta afirmação. O diferencial da exposição seria a reunião de diversas obras sobre o nu masculino, com obras do próprio Musée d’Orsay e emprestadas de outros museus e acervos particulares.  

Para além das belas obras de nu fomos surpreendidas também pela recorrente relação da nudez com a violência, mostrando a representação do erótico masculino intimamente relacionado à guerra. Nesta exposição, além de serem explorados muitos aspectos e significados do nu masculino, alguns dos artistas presentes recontextualizaram o nu heróico a partir de suas épocas e realidades. O objetivo foi claramente estabelecer um diálogo entre as diferentes fases da história a partir do olhar contemporâneo.

Numa referência à obra ‘A Origem do Mundo’, de Gustave Courbet (1866), a artista Courtesy Orlan retratou ‘ A Origem da Guerra’ (1989), destacando um falo ereto, presente no final da exposição, junto às representações da homossexualidade masculina, deslocada, em nossa leitura, por seu significado crítico e reflexivo em relação à história mundial, e não exatamente à erótica homossexual. Esta fotografia nos possibilitou algumas reflexões sobre a exposição e a história do nu masculino, que desde a Grécia antiga, principalmente na estatuária, tem a representação do homem em batalha; ou seja, a construção da virilidade pela violência.

L'Origine de la guerre by ORLAN at FIAC 2012, Paris

Esta obra nos remeteu também uma incômoda continuidade discursiva em que contextos e guerras mudam, mas a representação do homem em batalha permanece: soldados-meninos, reféns do discurso de poder dos ‘senhores da guerra’ que prometem glória eterna a ingênuos Aquiles contemporâneos. A crítica a tal discurso se mostrou mordaz na fotografia do artista David LaChapelle, onde, no paraíso prometido, um belo e jovem muçulmano é amarrado como Gulliver por 72 virgens, representadas por barbies em burcas coloridas; não mulheres, mas bonecas seriadas e vazias, como as promessas dos líderes religiosos e políticos que levaram e ainda levam muitos muçulmanos à guerra e, muitas vezes, ao suicídio como homens-bombas. A nudez e a sensualidade do jovem árabe são provocativas, tanto por ser a antítese dos corpos cobertos e os tabus em relação à sexualidade do mundo muçulmano, quanto pela certeza de que apenas uma morte violenta fará que este homem alcance o seu paraíso prometido.


Would-Be Martyr and 72 Virgins (2008). David LaChapelle

Após sair do Musée d’Orsay, atravessamos o Jardin des Tuileries com suas árvores desfolhadas à espera da neve, oferecendo-nos uma paisagem lúgubre como a nossa incômoda reflexão sobre a exposição Masculin/Masculin e a associação perene entre o erótico masculino e a violência. Courtesy Orlan é precisa na reflexão que expõe em sua foto, mesmo assim as pessoas continuam a chocar-se diante do falo ereto e de sua promessa de prazer, ao invés de pensar sobre a provocação filosófica contida no título ‘A Origem da Guerra’, na manipulação do desejo de jovens homens para que velhos homens satisfaçam seu desejo de poder e riqueza.

"La douche. Apres la bataille". 
Russian artist Alexendre Alexandrovitch Deineka

Ao finalizarmos este texto, questionamo-nos como seria uma exposição do nu masculino em que o apelo à guerra e ao herói em batalha fossem excluídos, em que a virilidade não estivesse relacionada à violência – que tantos problemas causam –, mas  sim um erótico com outras referências, em que o desejo e o corpo masculino fossem representados no simples cotidiano mundano da busca do homem por si mesmo, como nas obras de Paul Cézanne, Schiller, Cadmus, entre outros.


sábado, 14 de dezembro de 2013

Sonhos e Ruínas




 ‘Apague os seus rastros!’ – Bertolt Brecht



Noite passada tive um sonho, em imagens vívidas, daquele que sabemos que têm algo a nos dizer. Sonhei que tinha uma grande quantidade de lixo para jogar fora, todo o tipo de sucata: vidros, metais, papéis, móveis velhos, etc., empilhados em grandes prateleiras no quintal da casa onde cresci, nossa velha casa de madeira. Vendi os entulhos mais supérfluos, mais leves, no qual pensei serem ‘sem valor’. Contente, os vi sendo processados e transformados em grandes blocos prensados para serem encaminhados as empresas de reciclagem.

Mas as grandes prateleiras ainda estavam lá com o lixo mais pesado e que para mim era mais valioso, por isso queria vender para outra pessoa e não para o chiffonier que vendi o pequeno lixo. Um estranho sucateiro, vestido elegantemente de terno e com relógio de bolso, um novo-rico com ares de trapaceiro, alguém que enriqueceu com o lixo dos outros. Senti enorme antipatia por ele, pois ‘tirava’  algo precioso de mim.

Sabia que o destino do lixo seria o mesmo, mas resistia em vendê-lo, com apego aquele lixo, acreditando que poderia ganhar mais se vendesse a outro chiffonier. Repentinamente, meu pai e meu irmão chegam e começam a negociar o lixo com o mesmo sucateiro, não foi exatamente uma negociação, apenas disseram que queriam se livrar de tudo aquilo e começaram a carregar para o caminhão parado na frente de casa. Enquanto eles passavam com caixas e móveis, eu olhava paralisada.

Meu irmão lembrou das velhas garrafas de cerveja que também podiam ser vendidas, estas estavam em outras prateleiras fixas na parede lateral da casa; elas não eram minhas, mas de meu pai. Estranhamente não estavam em engradados, mas em grandes barris azuis de plástico. O sucateiro as recusa, diz que não tem interesse. Fico indignada por ele recusá-las, não compreendo, pois é vidro e este é 100% reciclável, por que recusá-las? Quem era afinal esse chiffonier?

De repente, sinto um grande apego ao meu lixo, e percebo que não quero me livrar de nada, quero guardar tudo, mantê-lo nas prateleiras atrás de nossa velha casa. Porém, meu pai e meu irmão continuam a levar tudo para o caminhão, contam também com ajuda de empregados do malicioso chiffonier. Sinto-me desolada, ainda apegada a todo o lixo que via passar na minha frente.

***

Ao acordar, sabia que precisava me desapegar de todo aquele lixo, que precisava apagar aqueles rastros e ruínas de minha memória afetiva.

10/12/2013