domingo, 29 de dezembro de 2013

Masculin/Masculin: nudez e violência no Musée d´Orsay

Por Carla Fernanda da Silva/ Sally Satler



Masculin/Masculin[1] nos traz em seus folhetos e releases a promessa de ser a segunda exposição de nudez masculina em Museus, diferentemente da nudez feminina, sempre presente. Porém, se pensarmos nos nus masculinos greco-romanos e da renascença, presentes nas ruas e museus italianos e, também em outros museus como o Louvre, questionamos esta afirmação. O diferencial da exposição seria a reunião de diversas obras sobre o nu masculino, com obras do próprio Musée d’Orsay e emprestadas de outros museus e acervos particulares.  

Para além das belas obras de nu fomos surpreendidas também pela recorrente relação da nudez com a violência, mostrando a representação do erótico masculino intimamente relacionado à guerra. Nesta exposição, além de serem explorados muitos aspectos e significados do nu masculino, alguns dos artistas presentes recontextualizaram o nu heróico a partir de suas épocas e realidades. O objetivo foi claramente estabelecer um diálogo entre as diferentes fases da história a partir do olhar contemporâneo.

Numa referência à obra ‘A Origem do Mundo’, de Gustave Courbet (1866), a artista Courtesy Orlan retratou ‘ A Origem da Guerra’ (1989), destacando um falo ereto, presente no final da exposição, junto às representações da homossexualidade masculina, deslocada, em nossa leitura, por seu significado crítico e reflexivo em relação à história mundial, e não exatamente à erótica homossexual. Esta fotografia nos possibilitou algumas reflexões sobre a exposição e a história do nu masculino, que desde a Grécia antiga, principalmente na estatuária, tem a representação do homem em batalha; ou seja, a construção da virilidade pela violência.

L'Origine de la guerre by ORLAN at FIAC 2012, Paris

Esta obra nos remeteu também uma incômoda continuidade discursiva em que contextos e guerras mudam, mas a representação do homem em batalha permanece: soldados-meninos, reféns do discurso de poder dos ‘senhores da guerra’ que prometem glória eterna a ingênuos Aquiles contemporâneos. A crítica a tal discurso se mostrou mordaz na fotografia do artista David LaChapelle, onde, no paraíso prometido, um belo e jovem muçulmano é amarrado como Gulliver por 72 virgens, representadas por barbies em burcas coloridas; não mulheres, mas bonecas seriadas e vazias, como as promessas dos líderes religiosos e políticos que levaram e ainda levam muitos muçulmanos à guerra e, muitas vezes, ao suicídio como homens-bombas. A nudez e a sensualidade do jovem árabe são provocativas, tanto por ser a antítese dos corpos cobertos e os tabus em relação à sexualidade do mundo muçulmano, quanto pela certeza de que apenas uma morte violenta fará que este homem alcance o seu paraíso prometido.


Would-Be Martyr and 72 Virgins (2008). David LaChapelle

Após sair do Musée d’Orsay, atravessamos o Jardin des Tuileries com suas árvores desfolhadas à espera da neve, oferecendo-nos uma paisagem lúgubre como a nossa incômoda reflexão sobre a exposição Masculin/Masculin e a associação perene entre o erótico masculino e a violência. Courtesy Orlan é precisa na reflexão que expõe em sua foto, mesmo assim as pessoas continuam a chocar-se diante do falo ereto e de sua promessa de prazer, ao invés de pensar sobre a provocação filosófica contida no título ‘A Origem da Guerra’, na manipulação do desejo de jovens homens para que velhos homens satisfaçam seu desejo de poder e riqueza.

"La douche. Apres la bataille". 
Russian artist Alexendre Alexandrovitch Deineka

Ao finalizarmos este texto, questionamo-nos como seria uma exposição do nu masculino em que o apelo à guerra e ao herói em batalha fossem excluídos, em que a virilidade não estivesse relacionada à violência – que tantos problemas causam –, mas  sim um erótico com outras referências, em que o desejo e o corpo masculino fossem representados no simples cotidiano mundano da busca do homem por si mesmo, como nas obras de Paul Cézanne, Schiller, Cadmus, entre outros.


sábado, 14 de dezembro de 2013

Sonhos e Ruínas




 ‘Apague os seus rastros!’ – Bertolt Brecht



Noite passada tive um sonho, em imagens vívidas, daquele que sabemos que têm algo a nos dizer. Sonhei que tinha uma grande quantidade de lixo para jogar fora, todo o tipo de sucata: vidros, metais, papéis, móveis velhos, etc., empilhados em grandes prateleiras no quintal da casa onde cresci, nossa velha casa de madeira. Vendi os entulhos mais supérfluos, mais leves, no qual pensei serem ‘sem valor’. Contente, os vi sendo processados e transformados em grandes blocos prensados para serem encaminhados as empresas de reciclagem.

Mas as grandes prateleiras ainda estavam lá com o lixo mais pesado e que para mim era mais valioso, por isso queria vender para outra pessoa e não para o chiffonier que vendi o pequeno lixo. Um estranho sucateiro, vestido elegantemente de terno e com relógio de bolso, um novo-rico com ares de trapaceiro, alguém que enriqueceu com o lixo dos outros. Senti enorme antipatia por ele, pois ‘tirava’  algo precioso de mim.

Sabia que o destino do lixo seria o mesmo, mas resistia em vendê-lo, com apego aquele lixo, acreditando que poderia ganhar mais se vendesse a outro chiffonier. Repentinamente, meu pai e meu irmão chegam e começam a negociar o lixo com o mesmo sucateiro, não foi exatamente uma negociação, apenas disseram que queriam se livrar de tudo aquilo e começaram a carregar para o caminhão parado na frente de casa. Enquanto eles passavam com caixas e móveis, eu olhava paralisada.

Meu irmão lembrou das velhas garrafas de cerveja que também podiam ser vendidas, estas estavam em outras prateleiras fixas na parede lateral da casa; elas não eram minhas, mas de meu pai. Estranhamente não estavam em engradados, mas em grandes barris azuis de plástico. O sucateiro as recusa, diz que não tem interesse. Fico indignada por ele recusá-las, não compreendo, pois é vidro e este é 100% reciclável, por que recusá-las? Quem era afinal esse chiffonier?

De repente, sinto um grande apego ao meu lixo, e percebo que não quero me livrar de nada, quero guardar tudo, mantê-lo nas prateleiras atrás de nossa velha casa. Porém, meu pai e meu irmão continuam a levar tudo para o caminhão, contam também com ajuda de empregados do malicioso chiffonier. Sinto-me desolada, ainda apegada a todo o lixo que via passar na minha frente.

***

Ao acordar, sabia que precisava me desapegar de todo aquele lixo, que precisava apagar aqueles rastros e ruínas de minha memória afetiva.

10/12/2013




quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O dia em que os negros orixás chegaram à casa de Edith Gaertner

Por Sally Satler / Carla Fernanda da Silva


Foto: Sally Satler

Foi na segunda (18/11/2013), início da noite. Atraída pelo som de pandeiros eu vi, dentro da casa de Edith Gaertner, os negros orixás com suas vestes. As imagens de Congás, do pai-de-santo e ekédjis, de caboclos, pretos-velhos, oguns e iemanjá espalharam-se pelo Museu da Família Colonial.

No quintal, corpos negros jogavam capoeira, animados por músicas negras e berimbaus. Dava para sentir as entidades, negros e negras que já viveram em Blumenau, foram tantos e tantas, invisíveis aos olhos da história.

Ao meu lado, eu vi e ouvi a negra Bertilha[i], falando para Avandié[ii]:

“O nosso dia chegou, demorou demais, mas chegou. Teve que ser de mansinho e sutil. Muitos que aqui estão não conhecem nossa história, porque não nos deixaram contar”.

“Vamos gritar pra eles ouvirem, então!” – disparou Avandié, com o jornal “The Colored” em punho, bem vestido, com seu terno impecável e sapatos lustrados.

“Te assossega, homi. Senão eles se assustam! É bem devagar que eles saberãoVamos assoprar no ouvido dessas pessoas que estamos felizes e aqui queremos ficar, pois também é o nosso lugar ”.

E ao som dos pandeiros e berimbaus as pessoas começaram, timidamente, a cantar:

Foge o nêgo sinhá
Oiá iá iá ía
Traz o nêgo sinhá
Paranauê, paranauê paraná
Paranauê, paranauê paraná

Abro e fecho os olhos, quase sem me acreditar ao ver negros corpos em sua dança mágica neste jardim, há tanto tempo colonizado. Hipnotizada pelo ritmo dos corpos e da música, sinto que ainda falta muito para conhecermos a história e as memórias daqueles negros que viveram/vivem e sofreram/sofrem aqui em Blumenau.

Com a palavra, os nossos historiadores!




[i] Bertilha da Rosa faleceu em 1986, atropelada por um ônibus em frente ao Corpo de Bombeiros de Blumenau. Pouco sabemos de sua história, apenas que em algum momento de sua vida enlouqueceu, e entre os internamentos na antiga Colônia Santana, perambulava pelas ruas de Blumenau. Nunca caminhava nas calçadas, sempre nas sarjetas das ruas, falando sozinha e com uma pedra na mão, como quem tem medo da sociedade onde vive e dela procura se defender. Ela também é personagem recorrente nas obras do escritor afroblumenauense José Endoença Martins.

[ii] Avandié foi um dos principais líderes negros da região, criou em Blumenau a UCHIC – União Catarinense dos Homens de Cor, em 1962. A UCHIC ficou ativa até os anos 1980, promovendo congressos, campanhas educacionais, palestras e concursos de beleza. Também publicou o jornal “The Colored”, em edições que contavam sobre o cotidiano dos negros no continente africano.  

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Identidade negra: Cultura afro-brasileira e diferenças na construção da história blumenauense são discutidas em documentário


Carla Fernanda da Silva[1]
Ricardo Machado[2]



Com o objetivo de inserir o debate sobre a história e cultura afro-brasileira em Blumenau, foi produzido pelos historiadores Carla Fernanda da Silva, Ricardo Machado e Fabiele Lessa, o documentário “Cultura Negra: Identidade e Diferença em Blumenau”, com o apoio do fundo municipal de cultura. O documentário problematiza o tema da identidade e diferença para não cairmos nos lugares comuns e reforçar os estigmas e a perpetuação da exclusão. Esta discussão é urgente em uma cidade como Blumenau, onde a afirmação étnica é uma constante nos discursos políticos e culturais. O documentário foi distribuído em escolas municipais e estaduais de Blumenau, além de sua exibição e discussão com professores e acadêmicos durante o Seminário de Licenciaturas da FURB (2010), bem como no encontro de Cultura Negra promovido pelo Movimento Cisne Negro (2010), e também em dois encontros de formação de professores da rede estadual de ensino.

A identidade como problema

Nas últimas décadas assistimos surgir de diversos lugares um discurso que se coloca como “multicultural”, ou seja, que apresenta a diversidade cultural nos contextos globais e locais. Muitas vezes esta diversidade é demonstrada pela necessidade de “respeito ao diferente” e acaba por reforçar o exotismo e demarcar fronteiras ainda mais rígidas entre o “eu” e o “outro”. O desafio parece estar justamente em demonstrar a historicidade da construção da identidade regional, e, sobretudo, sobre a produção da diferença. É preciso, neste caso compreender a identidade dentro de suas implicações políticas que autorizam a produção de um discurso que circula nos espaços institucionais e informais relativos ao que nós somos e deixamos de ser.

No caso, a cidade de Blumenau parece ser um lugar fundamental para problematizar a disputa pela identidade. Afinal, desde os anos 1970 a cidade tomou para si a produção de um discurso sobre a germanidade. Nascido do turismo, o discurso germânico investiu nas definições estéticas da produção artística, na arquitetura, na organização do espaço urbano, e, sobretudo, deixou marcas em nossos corpos. Mais que tudo, este processo de invenção das tradições, é também um processo de diferenciação que foi produzido através de relações de poder. Estas marcas construídas que definiram os limites entre o “nós” e “eles”, mas também entre “bons e maus”, e entre aqueles estão “incluídos e excluídos”. Afinal, “a identidade e a diferença não são, nunca inocentes”. (Stuart HALL. In Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2003.)

Discutir “cultura negra” em Blumenau é falar da história da produção desta identidade e sua capacidade de construção de pertencimento a história local e ao mesmo tempo sua negação através do discurso. Este contraponto não está em um passado imemorial, mas produziu-se neste processo histórico de normatização da identidade na cidade. Afinal, um dos efeitos fundamentais das políticas identitárias produzidas pela germanidade, foi justamente a definição deste outro da diferença que passa a viver como um deslocado ou se reafirma dentro de outras fronteiras identitárias que também passaram a ser construídas no período.

Este é o ponto fundamental que exige problematização. Afinal, não nos basta promover e estimular “bons sentimentos” com a diversidade cultural, pois o que está em jogo aqui não é nem mesmo o respeito e a tolerância com o diferente. Não nos basta promover o exotismo e a curiosidade sobre a diferença que implicam ainda mais os elementos de distanciamento e dominação.

A criação do Documentário e a discussão da Cultura Negra

Antes de iniciar as entrevistas que compuseram o documentário, elaboramos um pequeno rol de perguntas: ‘O que é ser negro?’; ‘O que é ser negro em Blumenau?’; ‘Quais são os espaços de convívio e manifestação da cultura negra na cidade?’; ‘Você já foi vítima de preconceito?’. Nesse momento ainda tínhamos uma concepção do documentário como instrumento de debate e revelação da presença negra em uma cidade que foi proclamada ‘germânica’, esperando depoimentos baseados numa realidade dual, de mundos em confronto e um discurso pautado na história da escravidão.

As respostas a primeira pergunta: ‘O que é ser negro?’ nos reportaram a uma nova discussão no documentário, não sedimentada numa noção preconcebida. A distância com que os povos são apresentados destaca o curioso, o exótico, reforçando a idéia de identidade em que o outro é aquele que não sou. A produção do documentário proporcionou um olhar de alteridade, a percepção do outro como um outro diferente daquele que indaga, pois experiências foram compartilhadas durante o processo de entrevistas. Destacam-se as experiências de alteridade que os entrevistados vivenciaram e que contribuíram para sua percepção de identidade, como recorda a musicista Noemi Kellermann: “Se vou recorrer a minha memória de infância, quem me disse assim – Tu és negra! – foram os outros. Sempre é assim, principalmente para a criança, que em seu convívio não vê muito a cor”. Neste depoimento percebe-se que a concepção de ser negro não pode ser compreendida a partir de uma noção naturalizada, mas sim de uma construção social.

Foi possível ampliarmos a discussão na entrevista com o escritor José Endoença Martins, que em sua fala reflete a literatura afrodescendente norte-americana de Toni Morrison, ao afirmar que: “ser negro é uma opção, você tem que querer ser negro. Então, isso implica numa posição em que você tem que assumir, mesmo que seja adversa aos seus interesses. Sendo uma opção, você pode fazê-la a qualquer momento. Não acredito que existe uma pessoa que seja vinte e quatro horas por dia e cem por cento negra, em todos os momentos. Ele vai ser negro em algumas situações, talvez mais negro em outras situações e vai ser menos negro em outras situações”.

A afirmação do ser negro enquanto opção é polêmica e provocadora. Polêmica porque num primeiro momento é impossível cogitar a cor da pele como uma opção, pois sempre relacionamos o ‘ser negro’ a uma condição natural, essencializada numa concepção biológica. Provocadora, porque transpõe o ‘ser negro’ para uma concepção cultural, construída na relação com o outro, ao mesmo tempo em que, sutilmente, revela a existência de uma referência do que é ‘ser negro’, uma identidade já constituída na sociedade e reivindicada quando se faz necessário. A opção se dá no momento de reivindicar esta identidade, pois são as relações que estabelecem essas necessidades, como refletiu Noemi Kellermann: “Essa identidade, esse sentimento de estar no mundo como negro, digamos assim, a gente vai desenvolvendo no decorrer do tempo. Porque o ser negro, e essa identidade de negro ela vai se configurando nessas relações que temos com as pessoas. E tu olhas para o teu interior e o que afinal você tem de diferente sendo negro? O que as pessoas vêem de diferente que as afasta ou aproxima. Porque tem as pessoas que se aproximam porque tu és negra, tem o fascínio pelo negro. E tem pessoas que se afastam por ter medo do diferente.”

As entrevistas apresentaram a necessidade de estabelecer uma diferença na forma de abordagem da cultura negra, ou seja, ir além do conteúdo continuamente abordado sobre a história africana e afrodescendente no Brasil, que por vezes limita-se ao processo de escravidão, a submissão do negro ao trabalho escravo e ao processo de abolição, em que os brancos libertam os escravos, ou seja, estuda-se a história africana e afrodescendente a partir da perspectiva de uma sociedade em que os negros estão sujeitos as decisões de outros, em que os mesmos não são protagonistas da história. Esta contínua representação do negro escravo e submisso se constituiu em banalização, ao invés de denúncia. E a banalização da servidão, da pobreza, da criminalização do negro, não contribui para uma discussão e uma ação afirmativa, mas sim reforçar o discurso que inferiorizou o negro por tantos séculos. Além da identidade negra estabelecida, outro aspecto é relevante, que é o ser negro no Brasil, ser negro e brasileiro, pois são duas referências identitárias a serem requeridas, conforme destaca o professor Carlos Alberto Silva e Silva:

O negro brasileiro é um corpo que tem dualidades: primeiro de ser brasileiro; segundo que é ser negro com alguns estigmas. E esses estigmas vem a partir da história do Brasil. A ideia da submissão, do superior e do inferior, a ideia de uma raça menor. E os negros no Brasil, mesmo na atualidade, acabam tendo esses resquícios da pós escravidão. E que não somente o negro precisa lidar com isso, mas a sociedade de uma forma em geral. Se temos um país plural e essa diversidade é muito latente, é preciso então começar a entender, a trabalhar e organizar essa diversidade. Por isso o negro é corpo em dualidade: ele é mais brasileiro? Ele é mais negro? E por conta disso muitos negros procuram negar a sua negritude. E essa negação da negritude ela se constrói em função disso, porque se na história presente o negro é representado como servil, ninguém quer ser servil. Ninguém pensa em ser eternamente servil ou na condição de marginal.

Finalizado o documentário, o passo seguinte foi a sua exibição e discussão. Primeiramente foi preciso fazer com que os alunos/professores, ao assistirem o documentário, repensassem seu conceito de identidade, de forma que as identidades não fossem fixas (nós x eles), hierarquizadas, naturalizadas, mas sim em que fosse possível questionar a forma de perpetuação destas representações. Assim, desenvolvemos uma atividade pedagógica antes da apreciação do documentário, com intuito de envolvê-los na discussão de identidade e, ao mesmo tempo, pensar o que eles tinham como conceito de identidade. Divididos em grupos, receberam perguntas que deveriam responder, sendo estas: O que é ser branco? – O que é ser negro? – O que é ser índio? – O que é ser alemão? – O que é ser italiano? – O que é ser brasileiro? – perguntas aparentemente simples, mas que, em suas respostas, revelaram a dificuldade em estabelecer algumas respostas, como, por exemplo, para a pergunta - O que é ser branco? – e também revelaram como os conceitos naturalizados hierarquizam as culturas na sociedade.

Foi preciso questionar a forma como as culturas vêm sendo representadas em sala de aula e livros didáticos. Assim, ao conceber uma prática diferenciada, em que o aluno pode explorar novas possibilidades de pensar o diferente, permitiu compreender a diferença, sem querer conformar e entender o Outro a partir dos parâmetros da sua cultura, ou seja, compreender as identidades por suas multiplicidades. Somente após uma discussão da sedimentação da identidade é que foi exibido o primeiro trecho do documentário, que tem como título: O que é ser negro? E, após a exibição, foi possível realizar uma discussão da identidade e da diferença, conforme abordamos anteriormente. Assim, os alunos/professores puderam pensar no ser negro partindo do que os entrevistados propuseram; a negritude como uma opção e sua constituição a partir do convívio social, e não como um sedimentado conceito de identidade: “Ninguém nasce negro. O negro se transforma, acontece, vai se construindo à medida que mantém relações interpessoais, relações no meio, relações com outras situações, com a comunidade, com o próprio ambiente onde vive.” (José Endoença Martins).


Ao diversificar as possibilidades de discussão da identidade e reelaborar as narrativas históricas permitiu-se trazer um outro olhar, para além do que os livros didáticos têm oferecido. O documentário também possibilitou deslocar o estudo dos livros e do mundo virtual, e trazer para sala de aula pessoas vinculadas ao movimento negro, à música, à capoeira e às religiões de matriz africana; permitindo a troca de experiência, estudando história a partir da vivência, percebendo essa história africana e afro-brasileira na contemporaneidade.

Artigo publicado no Jornal de Santa Catarina:


[1] Historiadora. Cursa doutorado em História pela Univ. Federal do Paraná – UFPR (bolsista CAPES). E-mail: escritadesi@gmail.com
[2] Historiador e professor da Univ. Federal Fronteira Sul (UFFS). Cursa doutorado em História Cultural pela UFSC. Email: ricardomachado1982@gmail.com

quinta-feira, 25 de julho de 2013

A Imprensa e o Crime: requintes da produção do medo



Tanta dor na vida
Da dor se duvida
O sangue a ferida
é que dão ibope
(Zeca Baleiro, em Datena da Raça)
  


A imprensa invade diariamente nossas mentes com apavorantes notícias de crimes. Alguns noticiários expõem o crime e criminosos destacando a crueza, sangue e violência. Outros dão ares de reportagem investigativa apresentando reconstituições virtuais e entrevistas com especialistas, que em geral não tiveram acesso às provas e investigações policiais, opinando a partir das conclusões superficiais produzidas pela própria mídia. Pessoas são antecipadamente condenadas pelo público autômato que irá esbravejar contra o Judiciário, caso o réu seja absolvido por falta de provas, mas em momento algum irá questionar a falácia midiática.


Na mídia impressa e eletrônica também multiplicam-se as notícias diárias dos crimes cometidos, muitas vezes acompanhados de fotos e nomes daqueles que foram detidos, antecipando assim o julgamento público. Julgamento dos infames, jamais de ricos e poderosos, mas daqueles que em toda a sua vida foram prejulgados por serem ou pobres, ou pretos, travestis, ‘viados’, sapatões’, ‘polacos’, ‘forasteiros’, etc. –, a lista dos preconceitos é grande. Para estes, jamais aparecerá o prefixo ‘suposto’ – ‘Suposto desvio de verbas públicas’ –, mas a acusação subjetiva nas já conhecidas palavras: o meliante, o feminino, o masculino, o acusado, o sujeito.

Esse processo de culpabilização de pobres e indesejáveis vem de longa data, mas ganhou conotações científicas no século XIX, com a invenção da criminologia, sobretudo a partir dos estudos de Cesare Lombroso e Alfhonse Bertillon, e outros que derivaram destes, que procuravam determinar os possíveis criminosos a partir do estudo de suas feições e ‘raças’, indicando àqueles que seriam mais propensos ao crime pelo tamanho de sua orelha, proximidade dos olhos ou tamanho do nariz, entre outras características. Bertillon criou o sistema de antropometria, em que por meio das medidas do corpo e com o auxílio fotografia como documentação, fez uma classificação que relacionava crimes e tipos físicos.

Apesar de tal teoria ser duramente rejeitada, sobretudo nos tempos atuais, não podemos deixar de ver na imprensa, e também nos seriados e filmes, que sua ideia é mantida e disseminada, tanto pela reprodução das poses nas fotos de fichamento e prisão, criada por Bertillon, quanto pelas pessoas – ou tipos – para usar um termo de criminólogos do séc. XIX – que são apresentadas em tal registro.

Nota-se que o julgamento pela aparência, rechaçado cientificamente, ganha sobrevida nas páginas e noticiários policiais, onde a vida destas pessoas é esquecida, é sobrepujada pelo interesse midiático em apresentar o crime como uma notícia sensacionalista e não como um problema social e político que deve ser analisado e solucionado em sua origem - que, na maioria das vezes, está relacionado à enorme desigualdade econômica e social. Diárias são as inserções sobre ‘menores’ que cometem crimes, com o claro intuito de direcionar a opinião pública a favor da redução da maioridade penal. Não é debatido o direito à moradia descente, à educação plena, à saúde, opções de lazer, ou seja, oportunidades reais de um viver pleno desta criança e de sua família. O que vemos, é a defesa de formas de exclusão social e confinamentos prisionais. 


François Bertillon, de 23 meses, registrado como criminoso 
em 1893 por seu pai. Seu crime: a gula.

A mídia produz e dissemina o medo ao dar uma conotação exagerada para um furto de uma calça jeans em um shopping ou comida e bebida em um supermercado, criando a sensação de um mundo inseguro e dominado pela ‘bandidagem’, onde o Outro, ao seu lado, não é pensado como um ser humano, mas como um criminoso em potencial, ainda mais se suas roupas e ‘traços’ são comumente relacionados ao crime pelas páginas e noticiários policiais.

A exploração do crime para aumentar as vendas e seus espectadores sempre fez parte do meio jornalístico, mas o que temos visto nos últimos anos foi a exacerbação desta prática. E o apelo promovido por editores e jornalistas sem um senso crítico e formação apurada cresce à medida que os jornais impressos e noticiários televisivos perdem público, venda e espaço diante do crescimento do acesso à internet. Não sejamos ingênuos em pensar que as páginas eletrônicas estejam isentas desta prática apelativa, infelizmente muitas tendem a copiar a grande a mídia: acham que estão transgredindo um formato tradicional da imprensa, mas ao expor as pessoas e a crueza do crime, apenas expõem o seu conservadorismo tacanho e excludente.

Existe uma relação desigual entre os empresários da mídia – que lucram com a notícia – e os jornalistas – assalariados – em geral, o poder financeiro dos primeiros tende a conduzir a notícia e as palavras dos jornalistas conforme o capital determina. A mídia está tão encantada em se admirar como quarto poder que está cega para a realidade, cega para a miséria perpetrada por grandes empresas e governos, isso quando não estão cinicamente compactuando com seus patrocinadores. A internet expôs a manipulação dos fatos e opiniões quando muitos resolveram registrar e divulgar os fatos sem o filtro das grandes corporações midiáticas e muitas vezes sem o jornalista de formação. O espelho do quarto poder quebrou, e mesmo assim resiste à mudança. Mas isto não impede os jornalistas de fazerem uma autorreflexão profissional para escolher qual papel quer assumir na sociedade.



Artigo publicado no Portal Blumenews, de Blumenau.