
Não vou entrar no mérito da infelicidade desta criança,
tanto por sofrer a rejeição da mãe, quanto por ter em sua certidão de
nascimento o nome de um estuprador. Nesta situação, creio que o testemunho de
quem vive esse drama pode ser mais contundente para refletir sobre o
assunto, como o testemunho de Claudia Salgado, em que destaco os seguintes dizeres: “Por ser fruto de um estupro, me sinto até
mesmo no direito moral de ser a favor do aborto. Eu sei o quanto foi horrível e
quantas vezes desejei não ter nascido, pois acredito que a vida da minha mãe
teria sido muito melhor se isso não tivesse acontecido. Ela teria tido mais
tempo para concluir os estudos, fazer coisas que uma jovem da idade dela faria
se não tivesse um filho nos braços. Ela não teria passado pela dor da
reprovação, pela humilhação que passou e teria muito mais chance de ter formado
uma família e ter um lar ajustado.” Com certeza, esses políticos que elaboraram
e votam favoráveis a essa lei não estão pensando nas crianças – frutos de
estupros – e muito menos nas mulheres. De fato, o Congresso está legitimando o
estupro e aqui está o ponto que desejo discutir: a ‘Cultura do Estupro’ que nos
assombra cotidianamente, num presente tão ilusoriamente considerado mais
‘evoluído’ do que os tempos vividos por nossos antepassados.
Desde esse episódio, fiquei mais atenta e surpreendo-me com
o crescente número de estupros pelo mundo.
Cito alguns casos em que o estupro é pensado como ‘epidemia’ pelos
estudiosos do tema: há o feminicídio no
México, problemas de anos; os recentes casos em Nova Délhi, na mística Índia; diversos
países do continente Africano, onde é usado como ‘arma’ de guerra, onde também
é muito comum as mulheres serem estupradas por seus maridos. No Rio de Janeiro, podemos citar os casos de
estupros em vans e ônibus, mas a verdade, pouco noticiada, é que os casos se
espalham pela cidade maravilhosa, situação também alarmante em Campinas. Na
Arábia Saudita, um escritor de auto-ajuda convocou pelo Twitter os homens a
estuprarem as mulheres que ‘ousassem’ trabalhar como caixas de supermercados,
trabalho permitido há pouco tempo às mulheres. Poderia citar muito outros
países e municípios brasileiros, pois o estupro está se tornando uma epidemia
mundial.

A misoginia tem crescido assombrosamente, inclusive no mundo
ocidental que parecia livre do que considera como uma barbárie, mas parece ter
atingido o seu novo ápice após a popularização da internet e a possibilidade
das postagens anônimas, onde muita gente destila seu ódio.
Somos impregnados diariamente por esse sentimento misógino,
em especial pela publicidade, que cada vez mais expõe a mulher como objeto
sexual ou como quem apenas se interessa pelo cartão de crédito do marido. Esse
papel que a mídia estabeleceu para as mulheres, paulatinamente foi ocasionando
ódio, aversão e uma certeza da inferioridade feminina. Mulheres são corpos a
serem consumidos com os produtos que vendem. E o objeto-mulher deve se render a
padrões de beleza, dietas, bulimia, anorexia, silicones, plásticas, maquiagens,
roupas de grife, perfumes, sapatos, etc. Tecnologias que esvaziam o ser, que o
tornam superficial em relação ao pensar e ao existir. Complementar a mass media, temos filmes americanos para
adolescentes e jovens que abordam as agruras da primeira relação sexual em
festas universitárias, onde muitas garotas bêbadas transam com os jogadores
bonitões. Há décadas esses filmes disseminam o estupro e nunca foram
questionados. As indústrias, fílmica e publicitária, reduzem a mulher a uma
consumidora, interesseira, ignorante, fútil, a um corpo a ser consumido. Qual
sentimento você alimentaria por esse ser? Elza Soares em sua música A Carne, canta que ‘A carne mais barata
no mercado é a carne negra’, tomo emprestada a sua letra para dizer que hoje ‘a
carne mais barata do mercado é a carne da mulher.’
Posso continuar a linha de pensamento e dizer que a impossibilidade
de consumir, frustra estes homens e a frustração causa violência dirigida à
mulher, que é usada na publicidade como recompensa ao consumo. (Se eu tenho
aquele carro, terei uma mulher bonita, também) É uma forma de explicar a
epidemia de estupro. Porém, não aceito pensar que o ser humano é apenas uma
marionete da mídia, de empresários capitalistas e políticos. Todos sabem que o
estupro e o assassinato são crimes, mas no instante em que poderiam optar em
não cometer estas violências, decidem pelo prazer e sensação de poder que estes
atos lhes proporcionam. Temos sim uma sociedade doentia, formada por indivíduos
em crise ética e moral, em que a misoginia produz uma epidemia de estupros e
feminicídio.
A misoginia é secular, intermitente e estamos em um momento no
qual este sentimento se propaga cada vez mais. Porém, cabe a nós mudar essa
realidade, a partir de uma reflexão pessoal sobre o machismo e a misoginia,
mudar nossas atitudes e um olhar atento às ideias que nos são vendidas pela
publicidade, pelo cinema, livros de auto-ajuda e pelo fundamentalismo religioso.
É necessário cortar os fios daqueles que nos manipulam e buscar uma ética para
a nossa vida. E um passo importante é compreender e praticar a igualdade entre
homens e mulheres, e também entre heterossexuais, homossexuais e transgêneros. Esqueçamos
os rótulos e classificações e respeitemos todos os seres humanos em igualdade.
Esta é uma ética possível e fundamental para o viver.
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* SALGADO, Claudia. Sou fruto de estupro e a favor do aborto.
http://www.geledes.org.br/areas-de-atuacao/questoes-de-genero/265-generos-em-noticias/19202-sou-fruto-de-estupro-e-a-favor-do-aborto