Com
o objetivo de inserir o debate sobre a história e cultura afro-brasileira em
Blumenau, foi produzido pelos historiadores Carla Fernanda da Silva, Ricardo
Machado e Fabiele Lessa, o documentário “Cultura Negra: Identidade e Diferença
em Blumenau”, com o apoio do fundo municipal de cultura. O documentário
problematiza o tema da identidade e diferença para não cairmos nos lugares comuns e reforçar os estigmas
e a perpetuação da exclusão. Esta discussão é urgente em uma cidade como Blumenau, onde
a afirmação étnica é uma constante nos discursos políticos
e culturais. O documentário foi distribuído em escolas municipais e estaduais de
Blumenau, além de sua exibição e discussão com professores e acadêmicos durante
o Seminário de Licenciaturas da FURB (2010), bem como no encontro de Cultura
Negra promovido pelo Movimento Cisne Negro (2010), e também em dois encontros
de formação de professores da rede estadual de ensino.
A identidade como problema
Nas
últimas décadas assistimos surgir de diversos lugares um discurso que se coloca
como “multicultural”, ou seja, que apresenta a diversidade cultural nos
contextos globais e locais. Muitas vezes esta diversidade é demonstrada pela necessidade
de “respeito ao diferente” e acaba por reforçar o exotismo e demarcar
fronteiras ainda mais rígidas entre o “eu” e o “outro”. O desafio parece estar
justamente em demonstrar a historicidade da construção da identidade regional, e, sobretudo, sobre a produção da diferença. É preciso, neste caso
compreender a identidade dentro de
suas implicações políticas que autorizam a produção de um discurso que circula
nos espaços institucionais e informais relativos ao que nós somos e deixamos de
ser.
No
caso, a cidade
de Blumenau parece ser um
lugar fundamental
para problematizar
a disputa pela
identidade.
Afinal, desde os anos
1970 a cidade tomou para si a produção de um discurso sobre
a germanidade. Nascido do turismo, o discurso germânico
investiu nas definições estéticas da produção artística, na arquitetura,
na organização do espaço
urbano, e, sobretudo,
deixou marcas em
nossos corpos.
Mais que tudo,
este processo
de invenção das tradições,
é também um
processo de diferenciação
que foi produzido através
de relações de poder.
Estas marcas construídas que definiram os limites
entre o “nós”
e “eles”, mas
também entre
“bons e maus”,
e entre aqueles
estão “incluídos e excluídos”. Afinal,
“a identidade
e a diferença
não são,
nunca inocentes”. (Stuart HALL. In Identidade e Diferença:
a perspectiva dos estudos
culturais. Petrópolis: Vozes, 2003.)
Discutir
“cultura negra” em Blumenau é falar da história da produção desta identidade e sua capacidade de
construção de pertencimento a história local e ao mesmo tempo sua negação através
do discurso. Este contraponto não está em um passado imemorial, mas produziu-se
neste processo histórico de normatização da identidade
na cidade. Afinal, um dos efeitos fundamentais das políticas identitárias
produzidas pela germanidade, foi justamente a definição deste outro da diferença que passa a viver como um
deslocado ou se reafirma dentro de outras fronteiras identitárias que também
passaram a ser construídas no período.
Este
é o ponto fundamental
que exige problematização. Afinal, não nos basta promover e estimular “bons sentimentos”
com a diversidade
cultural, pois o que
está em jogo
aqui não
é nem mesmo
o respeito e a tolerância
com o diferente.
Não nos basta
promover o exotismo
e a curiosidade sobre
a diferença
que implicam ainda
mais os elementos de distanciamento e dominação.
A
criação do Documentário e a discussão da Cultura Negra
Antes
de iniciar as entrevistas que compuseram o documentário, elaboramos um pequeno rol de perguntas:
‘O que é ser negro?’; ‘O que
é ser negro em Blumenau?’; ‘Quais
são os espaços
de convívio e manifestação
da cultura negra
na cidade?’; ‘Você
já foi vítima
de preconceito?’. Nesse momento
ainda tínhamos uma concepção
do documentário como instrumento de debate e revelação da presença negra em uma cidade que foi proclamada
‘germânica’, esperando depoimentos baseados
numa realidade dual,
de mundos em
confronto e um
discurso pautado na história
da escravidão.

As
respostas a primeira
pergunta: ‘O que
é ser negro?’
nos reportaram a uma nova discussão no documentário, não
sedimentada numa noção preconcebida. A distância com que os povos são apresentados destaca o curioso,
o exótico, reforçando a idéia de identidade em
que o outro
é aquele que
não sou. A produção
do documentário proporcionou um olhar de alteridade, a percepção
do outro como
um outro
diferente daquele que
indaga, pois experiências
foram compartilhadas durante o processo de entrevistas.
Destacam-se as experiências de alteridade que
os entrevistados vivenciaram e que
contribuíram para sua
percepção de identidade, como recorda a musicista Noemi Kellermann: “Se vou recorrer
a minha memória
de infância, quem
me disse assim
– Tu és negra!
– foram os outros. Sempre é assim,
principalmente para
a criança, que
em seu
convívio não
vê muito
a cor”. Neste depoimento
percebe-se que a concepção
de ser negro
não pode ser
compreendida a partir de uma noção
naturalizada, mas sim
de uma construção social.
Foi
possível ampliarmos a discussão
na entrevista com
o escritor José Endoença Martins, que em sua fala
reflete a literatura afrodescendente norte-americana de Toni Morrison, ao afirmar
que: “ser negro
é uma opção, você
tem que querer
ser negro. Então, isso
implica numa posição em que você tem que assumir, mesmo que seja adversa
aos seus interesses.
Sendo uma opção, você
pode fazê-la a qualquer momento. Não
acredito que existe uma pessoa
que seja vinte e quatro
horas por
dia e cem
por cento
negra, em
todos os momentos.
Ele vai ser negro em
algumas situações, talvez
mais negro
em outras situações
e vai ser menos
negro em
outras situações”.
A
afirmação do ser negro
enquanto opção
é polêmica e provocadora. Polêmica porque
num primeiro momento
é impossível cogitar
a cor da pele
como uma opção,
pois sempre
relacionamos o ‘ser negro’ a uma condição
natural, essencializada numa concepção biológica. Provocadora, porque
transpõe o ‘ser negro’ para uma concepção cultural, construída na relação
com o outro,
ao mesmo tempo
em que,
sutilmente, revela a existência de uma referência
do que é ‘ser negro’, uma identidade já constituída na sociedade
e reivindicada quando se faz necessário. A opção
se dá no momento de reivindicar
esta identidade,
pois são as relações que
estabelecem essas necessidades, como refletiu Noemi Kellermann: “Essa identidade, esse
sentimento de estar
no mundo como
negro, digamos assim,
a gente vai desenvolvendo no decorrer do tempo. Porque o ser negro, e essa identidade
de negro ela
vai se configurando nessas relações que temos com
as pessoas. E tu
olhas para o teu
interior e o que
afinal você
tem de diferente sendo negro? O que as
pessoas vêem de diferente
que as afasta ou
aproxima. Porque tem as pessoas que se
aproximam porque tu
és negra, tem o fascínio
pelo negro. E
tem pessoas que
se afastam por ter
medo do diferente.”
As entrevistas
apresentaram a necessidade de estabelecer uma diferença na forma de abordagem da cultura
negra, ou seja, ir
além do conteúdo
continuamente abordado sobre a história africana
e afrodescendente no Brasil, que por vezes
limita-se ao processo de escravidão,
a submissão do negro
ao trabalho escravo
e ao processo de abolição,
em que
os brancos libertam os escravos, ou
seja, estuda-se a história africana e afrodescendente a partir
da perspectiva de uma sociedade
em que
os negros estão sujeitos
as decisões de outros,
em que
os mesmos não
são protagonistas
da história. Esta contínua
representação do negro
escravo e submisso
se constituiu em banalização,
ao invés de denúncia.
E a banalização da servidão,
da pobreza, da criminalização do negro, não
contribui para uma discussão
e uma ação afirmativa,
mas sim
reforçar o discurso
que inferiorizou o negro
por tantos
séculos. Além
da identidade
negra estabelecida, outro
aspecto é relevante,
que é o ser negro no Brasil, ser negro e brasileiro, pois são duas referências
identitárias a serem requeridas, conforme
destaca o professor Carlos Alberto Silva e Silva:
O negro brasileiro é um corpo que tem dualidades: primeiro
de ser brasileiro; segundo que é ser negro com alguns estigmas. E esses
estigmas vem a partir
da história do Brasil. A ideia da submissão, do superior
e do inferior, a ideia de uma raça menor. E os negros no Brasil, mesmo
na atualidade, acabam tendo esses resquícios
da pós escravidão.
E que não
somente o negro
precisa lidar
com isso,
mas a sociedade
de uma forma em
geral. Se temos um
país plural
e essa diversidade é muito latente,
é preciso então
começar a entender, a trabalhar e organizar essa diversidade. Por
isso o negro
é corpo em
dualidade: ele é mais
brasileiro? Ele
é mais negro?
E por conta
disso muitos negros
procuram negar a sua
negritude. E essa negação da negritude ela se constrói em
função disso, porque
se na história presente
o negro é representado como servil, ninguém quer ser servil. Ninguém pensa em ser eternamente
servil ou
na condição de marginal.
Finalizado
o documentário, o passo seguinte foi a sua exibição e discussão. Primeiramente
foi preciso fazer
com que
os alunos/professores, ao assistirem o documentário,
repensassem seu conceito
de identidade,
de forma que
as identidades
não fossem fixas (nós x eles), hierarquizadas, naturalizadas, mas sim em que fosse possível questionar a forma de perpetuação destas representações.
Assim, desenvolvemos uma atividade pedagógica antes
da apreciação do documentário, com intuito de
envolvê-los na discussão de identidade e, ao mesmo tempo, pensar o que eles tinham como
conceito de identidade. Divididos em grupos, receberam perguntas que
deveriam responder, sendo estas: O que é ser branco? – O que
é ser negro?
– O que é ser
índio? – O que
é ser alemão? – O que é ser italiano? – O que é ser brasileiro?
– perguntas aparentemente
simples, mas
que, em
suas respostas,
revelaram a dificuldade em estabelecer algumas respostas, como,
por exemplo,
para a pergunta - O que é ser branco? – e também
revelaram como os conceitos
naturalizados hierarquizam as culturas
na sociedade.
Foi
preciso questionar
a forma como
as culturas vêm sendo representadas em sala de aula e livros didáticos.
Assim, ao conceber
uma prática diferenciada, em
que o aluno
pode explorar novas
possibilidades de pensar o diferente,
permitiu compreender a diferença, sem
querer conformar e entender o Outro a partir dos parâmetros
da sua cultura,
ou seja, compreender
as identidades
por suas
multiplicidades. Somente após
uma discussão da sedimentação
da identidade
é que foi exibido o primeiro
trecho do documentário,
que tem como
título: O que
é ser negro? E,
após a exibição,
foi possível realizar
uma discussão da identidade e da diferença, conforme abordamos anteriormente.
Assim, os alunos/professores puderam pensar no ser negro partindo do que
os entrevistados propuseram; a negritude como
uma opção e sua
constituição a partir
do convívio social,
e não como
um sedimentado conceito
de identidade:
“Ninguém nasce negro.
O negro se transforma, acontece, vai se
construindo à medida que mantém relações
interpessoais, relações
no meio, relações
com outras situações,
com a comunidade,
com o próprio
ambiente onde
vive.” (José Endoença Martins).

Ao
diversificar as possibilidades de discussão
da identidade
e reelaborar as narrativas
históricas permitiu-se trazer um
outro olhar, para além do que os livros didáticos têm oferecido. O documentário
também possibilitou deslocar
o estudo dos livros
e do mundo virtual,
e trazer para sala de aula pessoas vinculadas ao movimento
negro, à música,
à capoeira e às religiões
de matriz africana;
permitindo a troca de experiência, estudando história
a partir da vivência,
percebendo essa história africana e afro-brasileira na contemporaneidade.
Artigo publicado no Jornal de Santa Catarina: