domingo, 29 de dezembro de 2013

Masculin/Masculin: nudez e violência no Musée d´Orsay

Por Carla Fernanda da Silva/ Sally Satler



Masculin/Masculin[1] nos traz em seus folhetos e releases a promessa de ser a segunda exposição de nudez masculina em Museus, diferentemente da nudez feminina, sempre presente. Porém, se pensarmos nos nus masculinos greco-romanos e da renascença, presentes nas ruas e museus italianos e, também em outros museus como o Louvre, questionamos esta afirmação. O diferencial da exposição seria a reunião de diversas obras sobre o nu masculino, com obras do próprio Musée d’Orsay e emprestadas de outros museus e acervos particulares.  

Para além das belas obras de nu fomos surpreendidas também pela recorrente relação da nudez com a violência, mostrando a representação do erótico masculino intimamente relacionado à guerra. Nesta exposição, além de serem explorados muitos aspectos e significados do nu masculino, alguns dos artistas presentes recontextualizaram o nu heróico a partir de suas épocas e realidades. O objetivo foi claramente estabelecer um diálogo entre as diferentes fases da história a partir do olhar contemporâneo.

Numa referência à obra ‘A Origem do Mundo’, de Gustave Courbet (1866), a artista Courtesy Orlan retratou ‘ A Origem da Guerra’ (1989), destacando um falo ereto, presente no final da exposição, junto às representações da homossexualidade masculina, deslocada, em nossa leitura, por seu significado crítico e reflexivo em relação à história mundial, e não exatamente à erótica homossexual. Esta fotografia nos possibilitou algumas reflexões sobre a exposição e a história do nu masculino, que desde a Grécia antiga, principalmente na estatuária, tem a representação do homem em batalha; ou seja, a construção da virilidade pela violência.

L'Origine de la guerre by ORLAN at FIAC 2012, Paris

Esta obra nos remeteu também uma incômoda continuidade discursiva em que contextos e guerras mudam, mas a representação do homem em batalha permanece: soldados-meninos, reféns do discurso de poder dos ‘senhores da guerra’ que prometem glória eterna a ingênuos Aquiles contemporâneos. A crítica a tal discurso se mostrou mordaz na fotografia do artista David LaChapelle, onde, no paraíso prometido, um belo e jovem muçulmano é amarrado como Gulliver por 72 virgens, representadas por barbies em burcas coloridas; não mulheres, mas bonecas seriadas e vazias, como as promessas dos líderes religiosos e políticos que levaram e ainda levam muitos muçulmanos à guerra e, muitas vezes, ao suicídio como homens-bombas. A nudez e a sensualidade do jovem árabe são provocativas, tanto por ser a antítese dos corpos cobertos e os tabus em relação à sexualidade do mundo muçulmano, quanto pela certeza de que apenas uma morte violenta fará que este homem alcance o seu paraíso prometido.


Would-Be Martyr and 72 Virgins (2008). David LaChapelle

Após sair do Musée d’Orsay, atravessamos o Jardin des Tuileries com suas árvores desfolhadas à espera da neve, oferecendo-nos uma paisagem lúgubre como a nossa incômoda reflexão sobre a exposição Masculin/Masculin e a associação perene entre o erótico masculino e a violência. Courtesy Orlan é precisa na reflexão que expõe em sua foto, mesmo assim as pessoas continuam a chocar-se diante do falo ereto e de sua promessa de prazer, ao invés de pensar sobre a provocação filosófica contida no título ‘A Origem da Guerra’, na manipulação do desejo de jovens homens para que velhos homens satisfaçam seu desejo de poder e riqueza.

"La douche. Apres la bataille". 
Russian artist Alexendre Alexandrovitch Deineka

Ao finalizarmos este texto, questionamo-nos como seria uma exposição do nu masculino em que o apelo à guerra e ao herói em batalha fossem excluídos, em que a virilidade não estivesse relacionada à violência – que tantos problemas causam –, mas  sim um erótico com outras referências, em que o desejo e o corpo masculino fossem representados no simples cotidiano mundano da busca do homem por si mesmo, como nas obras de Paul Cézanne, Schiller, Cadmus, entre outros.


sábado, 14 de dezembro de 2013

Sonhos e Ruínas




 ‘Apague os seus rastros!’ – Bertolt Brecht



Noite passada tive um sonho, em imagens vívidas, daquele que sabemos que têm algo a nos dizer. Sonhei que tinha uma grande quantidade de lixo para jogar fora, todo o tipo de sucata: vidros, metais, papéis, móveis velhos, etc., empilhados em grandes prateleiras no quintal da casa onde cresci, nossa velha casa de madeira. Vendi os entulhos mais supérfluos, mais leves, no qual pensei serem ‘sem valor’. Contente, os vi sendo processados e transformados em grandes blocos prensados para serem encaminhados as empresas de reciclagem.

Mas as grandes prateleiras ainda estavam lá com o lixo mais pesado e que para mim era mais valioso, por isso queria vender para outra pessoa e não para o chiffonier que vendi o pequeno lixo. Um estranho sucateiro, vestido elegantemente de terno e com relógio de bolso, um novo-rico com ares de trapaceiro, alguém que enriqueceu com o lixo dos outros. Senti enorme antipatia por ele, pois ‘tirava’  algo precioso de mim.

Sabia que o destino do lixo seria o mesmo, mas resistia em vendê-lo, com apego aquele lixo, acreditando que poderia ganhar mais se vendesse a outro chiffonier. Repentinamente, meu pai e meu irmão chegam e começam a negociar o lixo com o mesmo sucateiro, não foi exatamente uma negociação, apenas disseram que queriam se livrar de tudo aquilo e começaram a carregar para o caminhão parado na frente de casa. Enquanto eles passavam com caixas e móveis, eu olhava paralisada.

Meu irmão lembrou das velhas garrafas de cerveja que também podiam ser vendidas, estas estavam em outras prateleiras fixas na parede lateral da casa; elas não eram minhas, mas de meu pai. Estranhamente não estavam em engradados, mas em grandes barris azuis de plástico. O sucateiro as recusa, diz que não tem interesse. Fico indignada por ele recusá-las, não compreendo, pois é vidro e este é 100% reciclável, por que recusá-las? Quem era afinal esse chiffonier?

De repente, sinto um grande apego ao meu lixo, e percebo que não quero me livrar de nada, quero guardar tudo, mantê-lo nas prateleiras atrás de nossa velha casa. Porém, meu pai e meu irmão continuam a levar tudo para o caminhão, contam também com ajuda de empregados do malicioso chiffonier. Sinto-me desolada, ainda apegada a todo o lixo que via passar na minha frente.

***

Ao acordar, sabia que precisava me desapegar de todo aquele lixo, que precisava apagar aqueles rastros e ruínas de minha memória afetiva.

10/12/2013